Sempre sonhei que, tal como acontecia noutras capitais europeias, Lisboa ia ter um dia uma sala especializada no género e não me refiro às frustrantes “scary room” dos Cinema City, onde é muito raro exibirem filmes de terror. Não, o que eu queria era uma sala que mostrasse algum carinho e interesse pelos fãs do género e, a verdade, é que durante uns tempos, houve uma sala que cumpriu mais ou menos esses requisitos, tornando-se uma espécie de templo cinéfilo para os amantes do Terror. Refiro-me ao extinto Cinema Xénon, ali para os lados dos Restauradores.
Curiosamente, o Cinema Xénon abriu as suas portas no dia 25 de Julho de 1980, o dia do meu 16º aniversário. De acordo com um artigo da época era “uma confortável salinha integrada num centro comercial, com capacidade para 202 espectadores e uma boa visibilidade, o que é importante. As condições acústicas são óptimas, para o que contribui uma coluna multicelular e um painel de 4 altifalantes que asseguram uma potência de 100 watts de saída. Dizem os responsáveis pelo Xenon que ali se vai mostrar cinema de boa qualidade. Fazemos votos que sim.” in Diário de Lisboa.
O filme de inauguração era um drama com contornos de ficção científica intitulado A RAPARIGA DE OURO (Goldengirl); contava a história de um médico neonazi que tenta transformar a sua filha numa superatleta de forma a que esta ganhe os jogos olímpicos. Sim, não era um filme de terror, mas foi o primeiro filme que vi neste cinema.
No início da sua carreira, nada na sua programação levaria a pensar que o Terror iria encontrar ali um lugar cativo. Ao A RAPARIGA DE OURO, seguiram-se, entre outros, ALVORADA ZULU, 33º À SOMBRA, ... E COM A MALA O DINHEIRO VOLTOU, O MEU PRIMEIRO AMOR e O MAIOR AMANTE DO MUNDO. GLÓRIA de John Cassavetes e SYBIL com Sally Field foram dois ocupantes de sucesso no ecrã do Xenon, mas no dia 5 de Novembro de 1981, este cinema descobriu a sua vocação. Foi nesse dia que estreou O NEVOEIRO de John Carpenter.
Antes de me debruçar sobre os filmes de terror do Xenon, convém esclarecer que esse cinema não era exclusivo do terror, passando todo o tipo de filmes, alguns com mais sucesso que outros. Entre eles destaco: FANTASIAS NOCTURNAS de Roger Vadim, MAKING LOVE, um drama gay, algo raríssimo nos cinemas da altura (e de hoje em dia também); JUVENTUDE VIOLENTA do realizador do SEXTA-FEIRA 13, Sean S. Cunningham; BLOOD SIMPLES – SANGUE POR SANGUE, o primeiro e, para mim, melhor filme dos irmãos Coen; INFERNO EM DIRECTO do realizador do HOLOCAUSTO CANIBAL, Ruggerop Deodato; NOVA IORQUE, 2 HORAS DA MANHÃ de Abel Ferrara; CORAÇÃO DA MEIA-NOITE um infelizmente esquecido thriller; PRIMAVERA PERDIDA, um drama de fazer chorar; PARAÍSO AZUL, um primo da famosa lagoa e alguns filmes sobre o fim do mundo, OS SOBREVIVENTES DO FIM DO MUNDO e 2019 DEPOIS DA QUEDA DE NEW YORK, ambos tiveram sucesso, e O SOBREVIVENTE DA CIDADE FANTASMA, com acção passada em 1999.
Outro grande nome do género, Lúcio Fulci, também teve alguns dos seus filmes em estreia neste cinema: O ESTRIPADOR DE NEW YORK, O MEDALHÃO DO MAL, ENIGMA e ZOMBI 3. Claro que algumas sequelas de séries de sucesso também estrearam por lá, como por exemplo SEXTA-FEIRA 13 – CAPÍTULO FINAL, VAMPIROS EM FÚRIA (o infamado THE HOWLING 2), o excelente EXORCISTA 3, A PROFECIA MALDITA (THE OMEN IV) e, sem surpresas, HALLOWEEN 4 – O REGRESSO DO ASSASSINO.
Mais tarde, após o seu encerramento, algures na década de 90, esta sala foi transformada numa Igreja Pentecostal. Quem diria que um cinema que tanto deu aos fãs do Terror se viria a transformar num templo religioso! Quem ficou a perder fomos nós os cinéfilos de Lisboa, principalmente os amantes do género.
Como os sonhos nunca morrem, continuo na esperança que um dia uma das nossas salas de cinema se especialize neste género. Tenho a certeza que os fãs, e somos muitos, iriam gostar. Por exemplo, os responsáveis pela programação das salas UCI no Corte Inglês em Lisboa, bem podiam ceder uma das salas, podia ser a mais pequena, ao Terror. Ou então que as Scary Room do Cinema City comecem a fazer jus ao seu nome.
Texto © Jorge Tomé Santos em 30.05.2014, actualizado em 29.11.2020
Obrigado, Jorge, por este artigo sobre uma sala de cinema marcante. Também gosto de filmes de terror. A iconografia do teu post é muito boa. Imagino que sejam recortes teus, não é? Ainda bem que os guardaste. Também tenho uns programas antigos do Apolo 70, aqueles feitos pelo Lauro António. Como em tempos fiz uma tese de mestrado sobre as salas de arte e ensaio, deves compreender este meu entusiasmo pelas salas, atuais e passadas. É uma das minhas paixões mais antigas e duradouras. Agora vivo em Paris e quase todos os dias vou às melhores salas que conheço, quase todas históricas, do tempo de ouro da cinefilia clássica e do movimento arte e ensaio. Aqui o passado ainda está muito presente. Em Portugal, o passado existe quase só nas memórias e nos gestos como o teu, mostram ao presente o que de melhor foi feito antes. Obrigado. Continuação de um bom trabalho.
ReplyDeleteÉ verdade João, os recortes são meus. Desde muito novo que me apaixonei pelos cartazes de filme e comecei a recortar e guardar os que eram publicados nos nossos jornais (hoje é raro publicarem algum). Também guardava religiosamente os programas e alguns bilhetes. Tudo isto faz parte do baú das minhas memórias.
ReplyDeleteTens razão, em Portugal o passado desaparece e ninguém parece importar-se muito com isso. Acho que os lisboetas deixaram de ser cinéfilos e isso é triste, muito triste.
Grande post Jorge. Eu como grande fã de Terror, adoraria que uma sala destas voltasse a existir, pois infelizmente em Portugal só se lembram da cinematografia fantástica quando há eventos como o MotelX e o FantasPorto. Mas os fãs gostam destes filmes o ano inteiro e seria bom e até rentável, pois acredito que iriam mais pessoas a uma sala específica de um género como este do que vão para ver um filme chamado comercial.
ReplyDeleteObrigado Bruno. Seria óptimo que algum distribuidor lesse esta "crónica" e ficasse inspirado para criar uma sala específica para o género, de preferência que não fosse da Lusomundo ou Zon ou NOS...
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